quarta-feira, janeiro 03, 2007

A pena de morte em questão


 
A recente execução da condenação à morte de Saddam Hussein levanta uma série de problemas éticos, respeitantes à dignidade da pessoa humana e ao que se espera de uma sociedade civilizada.
É certo que Saddam Hussein foi um dos mais sangrentos ditadores da história recente, a par de Pol Pot, Augusto Pinochet e tantos outros que ficaram impunes, como os generais argentinos que nos anos 70 são responsáveis por mais de 30000 mortos. A lista de países que neste preciso momento estão a viver sob regimes ditatoriais, ou totalitários é imensa. Muitos deles contam com o apoio das democracias ocidentais.
O principal problema que se coloca em relação à pena de morte está ligado com a inviolabilidade do direito à vida, consagrado como o primeiro dos Direitos do Homem. Esse direito é absoluto, ou o dever de o respeitar admite excepções?
Por outro lado, matar, em geral, bem como no caso do acto de matar um ser humano, em si, é um acto mau, hediondo, pois trata-se de aniquilar um ser humano, de eliminar uma vida. Mesmo sem recorrer a argumentos de carácter religioso, é fácil de admitir que o acto de matar é terrível, mesmo que seja executado para punir crimes de genocídio, como foi o caso de Saddam Hussein.
E a execução de Saddam Hussein revestiu-se de pormenores no mínimo chocantes:
a) foi filmada e exibida nos meios de comunicação do mundo inteiro;
b) o condenado foi agredido verbalmente por membros da assistência que, para cúmulo, gravaram imagens não oficiais da execução.
c) o processo judicial decorreu de uma forma precipitada e decorriam processos contra Saddam Hussein que ainda estavam longe de estar concluídos, pelo que a sua presença, enquanto responsável máximo por crimes contra a humanidade, era fundamental para que se fizesse justiça, independentemente do desfecho desses processos.
Há anda argumentos de carácter circunstancial que agravam o quadro em que decorreu a execução, embora sejam irrelevantes no que respeita ao problema da pena de morte: o clima da guerra civil que se vive no Iraque aconselhava que Saddam não fosse executado, uma vez que isso pode contribuir para um agravamento da situação; o facto da data da execução ter coincidido com a peregrinação a Meca, uma das festividades mais importantes do mundo islâmico, pode constituir um desrespeito pelas práticas religiosas do mundo árabe, ajudando a extremar ainda mais os fanatismos e a intolerância. Outro argumento que pode ser aduzido contra a execução de Saddam Hussein é o facto da sua execução o poder transformar num mártir da causa sunita.
Estes argumentos são irrelevantes no que respeita à inaceitabilidade da pena de morte, pois se considerarmos a vida um valor supremo, nada poderá tornar aceitável qualquer tipo de acto contrário à vida. Logo, sendo esse o caso, a pena de morte é inaceitável.
Mesmo que a execução de Saddam Hussein pudesse garantir a paz no Iraque, isso não a tornaria aceitável.
Se estamos perante um ditador que foi conduzido ao poder pelas potências ocidentais, principalmente pelos Estados Unidos e se foi mantido no poder enquanto isso satisfez os interesses ocidentais, mesmo sabendo que Saddam usava armas químicas contra o seu próprio povo e era responsável pela tortura e pelo assassínio de milhares de iraquianos, para não falar na guerra com o Irão que dizimou mais de um milhão de vidas, era justo que a sua condenação revestisse a forma de prisão perpétua sem direito a liberdade condicional. E era igualmente justo que os países ocidentais se responsabilizassem, quer em termos económicos, quer em termos logísticos, pelo cumprimento dessa sentença.
É preciso não esquecer que a dignidade da pessoa humana é um valor que não depende de credos religiosos, de origens étnicas ou de quaisquer outras condicionantes. Todos os seres humanos devem ser respeitados na sua condição de pessoa, mesmo os que não respeitam a dignidade das outras pessoas. Não é aceitável a pena de morte, nem a tortura, nem qualquer forma de tratamento indigno para além da privação da liberdade e da imposição das condições de segurança necessárias a que essa privação possa ser efectivada, na sequência de um julgamento justo e imparcial.
Isto porque os seres humanos partilham a mesma condição e são portadores da mesma possibilidade de compreensão e de vivência do infinito, para não ir mais longe.
Cada homem possui uma vida limitada, frágil, sujeita a condições que lhe conferem um carácter supremo. Aceitar a ideia de que há homens que jamais conseguirão ser portadores de bondade ou de uma inteligência compassiva, é admitir que a bondade e a compaixão são apenas algumas das vias que estão abertas à humanidade, o que diminui, fragiliza e ameaça de extinção o ideal de que a paz, a fraternidade e o respeito incondicional pela dignidade da pessoa humana devem ser os grandes objectivos da presença dos homens no mundo.
Isto deixa a porta aberta para a continuação da exploração do homem pelo homem, da discriminação económica, social, racial, religiosa, em nome de valores e de princípios em tudo alheios à promoção da pessoa humana como aquilo que mais vale a pena, a par do respeito pela vida no seu todo, encarada como a alma frutificante do planeta Terra.
Assim, em nome de interesses económicos, muitas vezes escusos e envoltos em práticas criminosas, continuamos a considerar que é normal e aceitável a destruição do meio ambiente, que é normal e aceitável que morram milhares de seres humanos na epopeia dos tempos modernos, ou seja, na viagem tormentosa em busca de uma vida melhor nesta terra da promissão que se está a transformar numa Europa-fortaleza, alheia ao sofrimento da metade sul do planeta, cada vez mais empobrecida e explorada pelo economicismo rapace dos países ricos.
A existência da pena de morte em muitos países do mundo dito “civilizado”, não é a prova de que há algo de irredutivelmente mau na natureza humana e que a humanidade se pode facilmente dividir em boa e má, mas, pelo contrário, é um evidente sintoma da mais grave perversão de que os seres humanos são capazes: o considerarem que parte do dinheiro do mundo, ou todo o dinheiro do mundo, vale mais que a vida, a felicidade e a realização pessoal de qualquer um dos seres humanos.
Falta ainda ver o que se passa no coração (sim, no coração) de todos aqueles que exultam com o espectáculo da morte de Saddam Hussein ou de qualquer outro condenado à morte. Cada uma dessas pessoas é tomada pelo ódio, talvez por razões muito fortes, e recusa-se a aceitar que existam outras vias para além do ódio, outras respostas para além da morte e da mortificação da esperança.





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