terça-feira, março 20, 2007

Contemplação



não te esqueças
que obtiveste esta preciosa vida humana
para seres gente
que o Sol que há em ti e que te é
briha mais que o disco solar que inunda de luz as manhãs dos teus dias

não te esqueças
que os teus olhos não são teus
mas do que através deles se mostra
que a luz que por ti passa vem de nenhum lugar

não te esqueças
que tudo o que vês nunca foi
que tudo o que és nunca existiu
que tudo o que queres te amarra
à ilusão da permanência e da separação

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Quão preciosa é uma vida humana?
É impossível dizê-lo por palavras que possam andar à solta fora dos corações que as habitam, que elas habitam, sem haver, com isso, um habitar que recuse a errância, a perdição e a auto-descoberta...
A vida humana é um convite do Universo.
Não nascemos só porque tem que ser. Há mais coisas envolvidas no nascer. Em primeiro lugar, a nossa libertação de tudo o que nos impeça de querer o que quisermos, humanamente ou não, alcançar.
E aí o sofrimento tem um papel decisivo, pois ele é a materialização do que nos impede de acedermos ao tal convite universal. É a materialização da nossa recusa essencial de nos vermos como a luz do mundo, imunda e munda, mundana e secreta, aberta e fechada, rosa e espinho, e oceano e praia batida pelas vagas das tormentas sem razão outra que a sua dança de sal e espuma, luz, bruma e esperança de não encontrar.
A partir do momento em que aceitamos ser qualquer coisa, deixamos de ser a criança que o infinito trouxe às teias mágicas da Ilusão. O nascimento é só mais uma cisão e a ruptura do amplexo oceânico que nos trouxe, em corpo de mãe e alma de recusar-se a nascer, como uma promessa que ninguém, nem nós mesmos no mais íntimo, terá que cumprir.
Teremos,pois, que passar o resto da vida a unir, para podermos remediar a tragédia cósmica do acto de parir que tanta dor semeia no mundo. Não dá para querermos ser mais do que essa tentativa, sempre aventurosa e perdulária, de não sermos nada para sermos aquele tudo que não é.
Se quisermos ser mais do que isso ficamos presos na teia do desejo e da frustração, do medo, da angústia e da permanente escolha do que não podemos ser em verdade.
O problema é que a compreendsão disso é um não compreender.
Tal como um vidro cristalino e imaculado, o que nos dá a ver a beleza do mundo não SE vê. E depois há os outros, homens animais e os seres dotados de mente, que, também eles, são o infinito a não ser. Quantas vezes nos agarramos à ilusão de que somos mais do que uma formiga, um cão, um gato ou uma pulga. E quando nos cruzamos com os preciosos seres que partilham connosco a humanidade, as teias da ilusão fazem-nos esquecer que a nossa história é a historia do próprio universo que, tal como a ciência vem demonstrando, propriamente não tem história, porque está sempre a recomeçar.
Mas falar em outro é permanecer na dualidade, como apelar a um uno que a si mesmo não se negue será criar uma torre de marfim ontológica que acabe por inaugurar uma tradição que tem, no seu termo, umas bombas atómicas e tudo o que de não escatológico tem a bestialidade humana.

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