domingo, dezembro 31, 2006

Um Novo Ano


O facto de usarmos um calendário, leva a que, pela força do hábito, acabemos por seccionar o tempo em blocos compartimentados que geram a ilusão de regularidade e de continuidade mecânica e objectiva.
O mecanicismo, nascido durante o renascimento e amadurecido no século XVIII, levou a que o homem ocidental representasse o universo como um relógio gigantesco, construído e posto a funcionar por um relojoeiro supra-humano, uma mente tecnocrática e completamente desligada das minudências da vida humana.
A cadência monocórdica dos mecanismos de relógio acabou por invadir até as mais livres manifestações da alma humana, caracterizada pela criatividade expansiva. A música ocidental é um reflexo disso mesmo, pois a ideia de ritmo que se instalou como natural deriva desse movimento de mecanicização da natureza.
Mas o tempo é ritmo. A vida é rítmica.
Mas o ritmo não supõe apenas regularidade, incorpora a ideia de mudança. A ênfase na regularidade é uma teimosia da mente humana que não suporta a mudança, uma vez que esta anda, muitas vezes, de mãos dadas com o sofrimento.
Não há duas Primaveras iguais. Mas existe um ciclo que faz com que as estações se sucedam, de forma regular, sim. Há uma necessidade a operar na Natureza, mas nada que se assemelhe a um relógio, a uma máquina, ainda que gigantesca e habilmente construída. Na Natureza não há "habilidade", só o homem é hábil, desde tempos primordiais que a inventividade técnica ganhou a dianteira, pois a criatividade pura, quando emerge, é livre de constrangimentos e, demasiadas vezes, vem e parte em silêncio.
Cada ser humano tem o seu ritmo, a sua história universal. Cada vida é uma sinfonia que engloba o vivente e o todo cosmico. A sinfonia cósmica é um emaranhado, caótico (o caos é a principal força genesíaca) e, ao mesmo tempo, racional. Por mais que se implementem estratagemas para a colectivização do tempo e para a regularização dos ritmos de vida, nada consegue oblitar a verdade essencial que cada ser humano (ou cada ser senciente) traz consigo ao nascer: cada homem é o primogénito o Infinito; cada vida é única e em cada vida joga-se o destino do universo inteiro.
Por isso o novo ano que começa é apenas uma construção colectiva resultante dum calendário que uniu povos e teceu história.
Cada dia é novo.
Os anos são dias contados. E para contar, há que descontar: para contarmos os dias temos que os reduzir a uma expressão simples, a uma data. Há um dia em que nascemos, um dia em que morreremos, há dias em que estamos felizes, dias em que sofremos, dias que aparentemente não deixam marcas. Mas em cada dia o universo inteiro está presente. Ao descontarmos a cadeia infinitésimal de eventos que fazem um dia, ficamos só com uma abstracção sem conteúdos significativos. E tendemos a procurar efemérides que tragam colorido à nossa imagem de cada dia. E o tempo, visto assim, não é nosso, é uma máquina que nos devora, inexoravelmente e que põe de pé um mundo onde somos praticamente insignificantes.
Por isso muitos homens procuram o poder, ou mendigam a atenção dos outros para terem a noção de que são significantes, ou significativos (mas pode-se ser significativo por motivos péssimos, como ser-se Hitler ou Salazar, ou algo assim de monstruoso).
Quando logo soarem as badaladas (outra vez o relógio) do novo ano que começa. biliões de seres humanos estarão a colaborar na construção de uma gigantesca ilusão, pois cada homem tem o seu ritmo de vida. Haverá pessoas que estarão a entrar em novos ciclos da sua vida, outras estarão numa fase de estagnação, outras irão morrer daí a poucos dias, horas, minutos...
Mas, o que importa, é que cada momento é a hora certa para sermos felizes.
Porque não nascemos para a infelicidade: a nossa infelicidade nasce do nosso esquecimento. Em algum momento da nossa vida esquecemo-nos (ou induzem-nos a esquecer) de que somos felizes. E a partir daí julgamos que o sofrimento é o nosso estado natural, a nossa verdadeira condição.
Que a mudança que se vai operar no calendário possa ajudar-nos a sair deste esquecimento.

_________
"Como já vimos as aflições mentais não desaparecem por si mesmas; não desaparecem simplesmente com o tempo. Chegam ao fim apenas como resultado de um esforço consciente para as minar, diminuir a sua força e por fim eliminá-las em conjunto.

Se desejamos ser bem sucedidos, devemos aprender como nos empenharmos a combater as emoções conflituosas. Começamos a nossa prática do Dharma do Buda lendo e escutando mestres experimentados. É assim que desenvolvemos uma melhor compreensão da nossa situação actual no interior do círculo vicioso da vida e nos familiarizamos com os métodos possíveis que podemos praticar para o transcender. Esse estudo leva ao que se chama “compreensão derivada da escuta”. É uma fundação essencial para a nossa evolução espiritual. Depois devemos processar a informação que estudámos até chegarmos a uma profunda convicção. Isto leva à ”compreensão derivada da contemplação”. Uma vez obtida uma verdadeira certeza sobre o assunto estudado, meditamos nele de modo a que a nossa mente possa tornar-se completamente absorvida por ele. Isto leva a um conhecimento empírico chamado “conhecimento derivado da meditação.” Dalai Lama

Sem comentários: