quarta-feira, julho 19, 2006

As meninas e as bombas

















Esta imagem tem vários elementos "chocantes", mesmo tendo em conta a anestesia que os media provocam na nossa atitude de base perante o sofrimento das vítimas da guerra, banalizado pelas imagens e pelas notícias que repetem à saciedade o horror que a humanidade espalha pelo mundo.
Duas meninas israelitas escrevem mensagens em bombas prestes a serem largadas sobre o Líbano. A sua força destruidora a esta altura já dizimou vidas entre a população civil libaneza, não fazendo distinção de crianças, mulheres, idosos, guerrilheiros, homens, todos eles como nós!, como também são como nós as meninas que escrevem nas bombas. A nossa humanidade está profundamente envolvida no acto de escrever em bombas, e muito especialmente por se tratar de crianças que vêm ao mundo, e nele se mantêm enquanto as deixamos, sob o signo da inocência.
Ora, se estas crianças são como nós, também é verdade que nós somos como elas, embora a consciência disso nem sempre seja muito clara. E elas não estarão a fazer aquilo por sua iniciativa, pois alguém as conduziu a um local altamento vigiado e controlado por militares e lhes deu acesso às bombas e lhes apresentou como louvável o acto de escrever mensagens naquelas bombas. Há,portanto, uma sociedade inteira envolvida nos mecanismos da lógica de ódio e perversão da humanidade, a ponto de tornar natural vários actos contrários ao que seria natural, pois o que é natural é que os homens se esforcem por alimentar o amor e todos os comportamentos envolvidos na sua expansão.
Levar crianças a um local onde se prepara a guerra e fazê-las participar intimamente na guerra, tornando-a acessível ao seu imaginário e às suas emoções, talvez até no âmbito duma visita de estudo, mas não sei qual seria o caso retratado na foto, é um acto absolutamente contrário ao que deve ser a educação das crianças.
Mas não se pense que é só naquele caso e naquela sociedade que se promovem actos deste tipo, contrários ao que deve ser a educação. Mesmo entre nós estes actos são praticados sem problemas, com toda a naturalidade. A escola, só por si, pela forma como está estruturada, fomenta a destruição da humanidade inocente, ao impor às crianças modos de estar padronizados e enformados por concepções do mundo demasiado rígidas e, em quase todos os casos, insuficientementemente elucidados por uma reflexão integradora e clarificante.
A civilização ocidental foi-se gradualmente estruturando em torno de um conjunto de linhas de força que acabaram por erigir o mundo em que hoje vivemos.
A forma como nós nos vemos, em confronto com o mundo, com os outros homens, com a Natureza, depende dum conjunto de mecanismos profundamente enraízados no nosso psiquismo, que tornam a nossa mente num cárcere e destroem todas as possibilidades de vivermos em alegria. Vivemos ao sabor dos ditames erráticos e destrutivos do Ego. O "penso, logo existo", saído da fantasmagoria cartesiana, tornou-se progressivamente o fundamento de toda a actividade conciente dos seres humanos do ocidente, ou profundamente inflenciados pela civilização ocidental.
Estas bombas que nos chocam simbolizam a nossa atitude de base em relação aos outros: o confronto, o ataque, a agressididade...
Consideramos à partida que a nossa afirmação, em todas as áreas da nossa vida, passa por um ataque da posição dos outros, um ataque defensivo, como se o nosso ego estivesse constantemente em risco de perder o seu lugar ao sol. Mesmo que saibamos que a energia incomensurável do sol chega para todos e para cada um, achamos que o quinhão que nos cabe tem mais brilho e calor se os outros se virem privados da mesma parcela de luz solar. E se vemos que outros têm mais luz, parece-nos que a nossa parcela se torna insuficiente...
Por isso parece-nos mais fácil atacar do que aceitar as coisas como são na realidade.
Na verdade nunca olhamos os outros como a melhor parte do que somos, desde muito condicionamo-nos a encarar a vida como um sistema de trocas: dou-te atenção e tu retribuis, dando-me assim uma prova de vida e de valor.
Mas também é chato pensarmos que temos que ser compassivos com todos os seres humanos, mesmo com aqueles que estão do lado de lá da fronteira a apertar um cinto de explosivos. Não serão eles seres humanos também? Eles estão a preparar-se para nos fazer explodir e dão a vida na execução desse acto. Essa é a prova que todos perdem quando o ódio se torna mais forte que o amor, quando a vida é encarada como uma ocasião para fazermos vingar as nossas teimosias, os nossos ódios, as nossas frustrações.
Também é claro, claro como a água, que nós aqui neste robordo ocidental da Europa, vivemos num contexto diferente do das crianças da fotografia. Isso é verdade, trata-se dum contexto diferente, as nossas circunstâncias são diferentes, por isso as formas como não vivemos o amor e a compaixão são diversas, muitas vezes não exteriorizadas. Mas vivemos para cá da cortina de ferro com que a Europa da abundância se está a blindar contra a entrada de imigrantes vindos de zonas-problema e pouco estimadas do globo. Diariamante morrem pessoas a tentar atravessar desertos, extensões de água, muros de arame farpado, morrem afogadas, de exaustão, de fome, frio e sede, quase todas elas vítimas de redes mafiosas que lhes prometem o paraíso para lá duma viagem plena de riscos e sem os confortos que de barato damos ao gado.
Muitas guerras do Líbano, diariamente, sem o ribombar das bombas e a demência alada dos aviões de combate, sem os holofotes dos media, só com a nossa indiferença em relação ao sofrimento alheio.
E não precisamos do cinto de explosivos e da sujidade dos atentados. A indiferença mata com igual exactidão.
Por outro lado aceitamos com toda a naturalidade que os governos do lado de cá da cortina de ferro ponham em causa os direitos sociais, conquistados ao longo de mais de dois séculos de luta, em nome dum economicismo amoral e desumano que enche os cofres das multinacionais e das empresas que se dedicam à usura e à especulação selvagem.
O desmantelamento do Estado social, aliado ao uso totalitário dos sistemas democráticos, cada vez mais esvaziados de densidade político-moral, para a estruturação de projectos de poder mais relacionados com o vedetismo imediatista dos líderes políticos do que com o bem público, trará no próximo futuro um refinamento da indiferença individual e pública. Ver-nos-emos cada vez mais mergulhados numa sociedade do consumo e da fruição, onde ser fraco, doente, velho, deficiente, inconformista..., será visto como um escândalo insuportável, como uma contrariedade que há que descartar a todo o custo.
Todas as bombas do ódio, da indiferença e do adormecimento, ou embotamento, moral explodirão. E tal como as meninas da foto descobrirão, mais cedo ou mais tarde, com muita ou pouca consciência, acabaremos por descobrir que nós somos as principais vítimas da nossa indiferença, do nosso ódio, do nosso conformismo hedonista.

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