domingo, outubro 23, 2005

O que é a realidade?


O que é real? Para que as considerássemos reais, o que falta às coisas que consideramos irreais?
Falta-lhes o ser. Resposta óbvia que tem mais de dois mil e quatrocentos anos de metafísicas e de ontologias, a sustentá-la.
Mas o que é o ser?
É um acontecimento-fundamento de tudo ou está fora do acontecer, como seu sustentáculo último?
Difícil, a resposta.
Pois o ser de todas as coisas parece estar actuando nelas, como actua em nós, continuamente. No entanto, tudo muda. Tudo se transforma. Tudo muda de forma.
Em que sentido essa mudança "é"? E as formas que a correnteza do acontecer vai ganhando no seu âmago, a multiplicidade sempre a surgir e a dissolver-se, também "são"?
"Ser" é um verbo. "O ser", um substantivo.
E com isto a nossa consciência vai escorando aquilo que se lhe mostra. Assim se sedimentam as crenças na realidade das coisas, a crença na realidade como algo de independente da nossa consciência, algo que , mesmo que deixemos de existir, continuará a estar sendo, como acontecia antes de nós termos consciência disso.
Só que "ser" é estar sendo, é movimento, mudança constante. "O ser", mais parece uma cristalização de tomadas de consciência. Uma espécie de coágulo que impede a circulação do que é no âmago do nosso ser que, também ele, é movimento, como se o universo inteiro fosse uma dança onde o que não é movimento é desarmonia.
Isso a entropia. O arrefecimento do ímpeto genesíaco que dá origem a tudo, a fonte, a origem que é o centro de onde tudo surge e para onde tudo tende, princípio e fim, no âmago de todos os lugares. Parar é um afastamento. Por vezes confundido com uma evolução.
Fluir, deixar fluir, deixar-se fluir. Esse o segredo que Heraclito tão bem intuiu. Não temos que ser sempre os mesmos, porque nada o é. Tudo é um. E o ser é perfeito na sua redondez, como dizia Parménides que muitos consideram adversário de Heraclito. E a redondez do ser não é mais do que fluxo que une o princípio e o fim. A abertura que rasga o fulgor dos mundos e que torna possível tudo o que somos.
E o que somos? Também somos "reais"?
Há "realeza" em todos os homens, pois cada ser humano é o mais digno de admiração que existe no universo. É que o ser no homem afirma-se de múltiplos modos, aflora sob múltiplas formas, por isso desde a antiguidade se considerou o homem um resumo do universo, um microcosmos.
Mas se a realidade for um enquistamento, um congelamento do movimento na e pela nossa consciência, então não devemos ser "reais".
Tudo o que for real em nós deve ser dissolvido, esvaziado de sentido, integrado no ser que somos verdadeiramente. Esse o papel da arte, esse também o segredo de coisas estranhas como os heterónimos de Fernando Pessoa. "Fingir" para o poeta da omnipresença, é des-realizar, tornar mais que real, reduzir o real ao nada (no fundo é isso que ele é), para que tudo o que "é" possa ser assumido em verdade.
E assim, largados na imensidade da liberdade pura podemos encontrar-nos.

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