Tudo o que vem à tona dos dias pode ser um apelo. A nossa atenção por vezes está presa a outros afloramentos da vida, muitas vezes a ilusões e a coisas que já passaram. Por isso não reparamos no que nos é dito. Parar, escutar e olhar: o lema válido para todas as "passagens de nível".
quinta-feira, outubro 27, 2005
da beleza...
Dizer que a beleza está em toda a parte é um lugar comum... Seremos mesmo capazes de a apreciar?
O homem é capaz de beleza (num sentido próximo ao de uma afirmação de Sto. Agostinho sobre Deus, o homem é "capax Dei"). "Capaz de beleza"? Em múltiplos sentidos: capaz de apreciar a beleza, capaz de criar beleza, capaz de incorporar beleza na sua atitude perante a vida e nos seus comportamentos, embora o cumprimento disto não pareça uma regra. Mas estou a falar em termos de "capacidade" e essa existe a par de outras que, como é natural, podem ser contraditórias ente si. Como é capaz de beleza, também é capaz de fealdade. As duas coisas andam a par.
Até se pode constatar que por vezes as pessoas trazem a fealdade para ambientes belos, podendo também acontecer o contrário, pois a beleza pode semear-se nos corações, e depois nas sensações.
Ser capaz de beleza equivale a ser capaz de harmonia. Nós podemos harmonizar-nos com o que nos rodeia (e com os que nos rodeiam), podemos também promover a harmonização dos outros connosco e com o que nos rodeia. Em grande medida a arte vive no centro deste processo.
O problema é que a arte é encarada como uma fuga, uma ilha de sentido que está desligada do resto, da rotina do nosso dia-a-dia, dos medos que nos invadem quando paramos um pouco e certas lembranças nos assaltam.
O homem contemporâneo, que se encontra numa encruzilhada em termos da sua evolução espiritual, encontra-se desligado do cosmos, do pulsar que harmoniza os seres num todo cujo sentido vivifica cada uma das suas partes, mesmo as mais ínfimas. A beleza participa dessa vibração.
Se a vida for encarada como um impulso para a beleza, vindo do mais profundo, do âmago do ser, então a nossa relação com tudo altera-se significativamente. Ganhamos uma visão participativa, uma visão diacosmésica. Já não somos um centro de atracção e de repulsão, mas uma abertura ao que vem. Um rasgão nas membranas de ilusão que nos separam. E a separatividade é mesmo um problema importantíssimo. Estamos sempre a deixar de fora o que ameaça o nosso fechamento egótico. Assim com a palavra que nos é dirigida pelos outros, mesmo em momentos significativos, assim com o acontecer do presente que se (nos) dá.
Ou deserdados da trama cósmica, ou fanáticos da incompletude. Não admitimos outras possibilidades. Enquanto uns se rebentam em nome de Deus, outros definham sem razão. É o caminho que a humanidade tem preparado.
Temos que cultivar a errância. Que voltar aos hábitos transumantes dos nossos antepassados. Isto num sentido intelectual e espiritual. No âmbito intelectual, a recusa do dogmatismo e da unidimensionalidade logóica, é urgente. Racionalizar em direcção à superação da razão. Pensar para exorcizar a clausura de nos querermos seres pensantes. No âmbito espiritual, o silêncio. Escutar o silêncio, trazê-lo para o centro do que somos (não é bem isso, é mais colocarmo-nos no centro do que somos, no centro onde o Silêncio é).
A indústria da ilusão e da uniformização dos indivíduos impede esta mudança radical.
Daí a importância da arte que escapa ao consumismo e às tendências dominantes.
Nós estamos condicionados para a agitação permanente. Fala-se muito do stress da vida nas grandes cidades, mas somos educados nele e para ele. Para que a gigantesca massa de formigas humanas se movimente na sua rotina tão igual e tão anti-natural, a ansiedade é necessária. É isso que nos faz enfrentar as filas de trânsito, as multidões que fervilham sem nexo, a frieza dos desencontros dos olhares, dos esgares em vez de sorrisos, da indiferença e da exclusão.
E a beleza? Ficamos dependentes de padrões de apreciação e de criação de beleza. E consideramos isso uma inevitabilidade, pois vivemos numa redoma axiológica, construída pela civilização ocidental para a consumação da produção em massa e da submissão da humanidade aos imperativos da economia da exploração.
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