sexta-feira, fevereiro 24, 2006

somos mais...


Se nós tivéssemos plena consciência do que é um ser humano, o nosso deslumbramento perante qualquer um dos nossos semelhantes, qualquer um, seria duma grandeza tal que não resistiríamos a sentir-nos abraçados por uma força maior, que nos infundiria uma alegria tão intensa que nos percutiria quase até aos limites do suportável.
Trataríamos cada uma das pessoas com quem falássemos com a mesma deferência com que os súbditos tratam um rei, com que os fiéis tratam o papa, por exemplo. Pois o que têm esses homens a mais que qualquer um dos demais?
Do mais humilde sem-abrigo, ao mais poderoso dos homens, cada homem é uma centelha divina que traz o selo do infinito impresso na sua interioridade. Isto apesar das máscaras, dos muros, das fugas, das mentiras, das negações.
Se pudéssemos ver-nos, a cada momento, a partir do ponto de vista de quem está pronto a partir, de quem neste mundo não tem uma morada definitiva, de quem, enfim, tem que construir uma frágil jangada para enfrentar as correntezas da vida, daríamos muito mais valor ao que somos, em verdade. E veríamos os outros à luz dessa verdade radical.
Os bens materiais, o estatuto, as pequenas grandezas que insuflam o nosso ego com um falso sentido de superioridade, tudo isso tem a marca da efemeridade e acabará por se desfazer em pó. No entanto, muitos de nós guardamos no nosso coração recordações de coisas sem utilidade, simples, gráceis e altamente siginificativas: o sorriso duma criança num dia em que estávamos tristes, o primeiro beijo, um encontro com alguém que nos marcou, uma festa em que nos sentimos amados, um presente que nos fez reconhecer o valor da amizade... Se isso permanece, apesar da passagem dos anos, das mudanças que a vida foi trazendo, do envelhecimento, do cansaço, é porque é feito duma matéria que não se corrompe, antes nos enriquece. Talvez isso fique connosco durante mais tempo do que conseguimos imaginar...
E contudo há coisas que fazemos que nos impedem de ter mais experiências deste tipo. De cada vez que nos fechamos ao diálogo, estamos a criar barreiras que vão construindo uma prisão onde a nossa alma vai perdendo o uso das suas mais nobres capacidades. Tal como existem órgãos no nosso corpo que se atrofiam com a falta de exercício, na nossa alma há funções que ficam adormecidas. As consequências disso na nossa vida são tremendas, uma vez que nascemos com uma estranha característica: podemos tornar-nos naquilo em que acreditarmos.
Se acreditarmos que não temos coração e que a vida é uma competição em que devemos tentar tudo para sermos melhores que os outros, então seremos seres com uma deficiência cardíaca indiagnosticável pela medicina, mas que nos envenenará os dias e nos transformará em seres febris com uma vida miserável e árida. Por mais que tenhamos, estatuto, dinheiro, etc., etc., há um vazio sempre a crescer que acabará por nos precipitar para uma morte sem remédio e profundamente injusta, pois, aos nossos olhos, morrer será uma inconsistência da vida, irracional e imerecida. Mas está errado chamarmos morte apenas ao fim do processo, pois a morte é exactamente esse processo de mumificação a que nos submetemos ao longo da vida, primeiro em virtude daquilo a que se chama educação e, depois, através das escolhas egóticas que vão levando a que nos resumamos a uma animalidade industrializada.
Um ego entre egos, num mundo de fantasmas que odeiam a vida.
E há muita crueldade na forma como rejeitamos o valor intrínseco dos outros. Somos condicionados pela sociedade a conformarmo-nos às tendências dos grupos sociais que integramos. Vivemos muito marcados pela opinião dos outros e é muito fácil ir aí buscar uma pauta para dirigirmos as nossas escolhas. E assim rendemo-nos à conformidade e aqueles que não cabem nela são encarados como apátridas e indigentes. Muitos artistas, por exemplo, sofreram na pele a rejeição dos seus contemporâneos, precisamente devido ao seu inconformismo. Se alguém recusa viver sob os ditames do socialmente aceite, está a pôr em causa uma ordem estabelecida. Essa ordem visa transformar cada ser humano numa força de produção. Tal e qual uma máquina.
Ora, a produção está longe da criação.
De acordo com grande parte das tradições culturais o universo foi criado e não produzido. Mesmo o demiurgo do Timeu de Platão é um artífice, um criador e não um operário, mero produtor (re-produtor). E cria de acordo com modelos eternos. Pois criar é trazer à vida. Produzir é colocar no mundo, atirar para o mundo algo. Quem cria tem que nutrir, tem que se dar à sua criatura, ou criação. É um acto de amor. "Amor" num sentido pleno, sem exclusividade e sem os entraves que normalmente colocamos à força expansiva que se esconde nessa palavra tão dita, mas tão mal-dita.
Se as fábricas criassem não poluiriam, nem necessitariam da máquina imensa de produção de desejo a que chamamos publicidade. Também não pagariam salários de miséria. Na verdade não há dinheiro que pague o acto de criar.
O inconformismo dos artistas, dos poetas, dos loucos, dos génios, das crianças, é uma manifestação do poder criador. Todos os homens nascem com esse poder, pois o seu nascimento é um facto tão importante na história do universo quanto o big-bang de que fala a física. Nenhum homem nasce fora dos desígnios do universo. Todos os homens são convocados para acrescentarem algo, para ajudarem à Criação.
Mas com isto não estamos a esquecer os homens que se entregam ao mal. Também eles nasceram no seio da Criação. E a monstruosidade dos crimes, dos genocídios, da exploração do homem pelo homem reside precisamente na negação desta evidência ontológica: cada homem traz em si uma centelha divina.
E qualquer homem que detenha poder sobre outros homens deve lembrar-se constantemente que assumiu uma posição iníqua, ao julgar que manda, que pode limitar a divindade que veio ao mundo na pessoa de cada um dos seus semelhantes. É óbvio que as sociedades e as suas instituições têm que ser geridas. Mas o espírito de serviço deve ser a inspiração de cada indivíduo que assuma cargos de mando. A simples preferência dada a pessoas próximas é uma desconsideração de todas as outras e isso pesa.
No entanto, ninguém tem verdadeiro poder a não ser o de se orientar na vida. Quem nos governa, ou quem tem um qualquer cargo de chefia em relação ao qual estejamos subordinados, não manda verdadeiramente no nosso poder de sermos quem podemos ser. Pois o que dita as nossas obediências aos poderes fácticos da vida não é o mais importante de nós. A nossa melhor parte vive para além disso. É parte integrante do infinito.
Poderemos ser governantes, governados, milionários ou mendigos que nenhum desses estados será mais ou menos à luz do que somos em verdade.
E como poderemos descobrir o que somos em verdade?
É simples. Basta que prestemos atenção ao que em nós é perecível. Posso ter, por exemplo, um cargo de prestígio, posso ter estatuto e meios de fortuna consideráveis, mas basta uma coisa simples como um derrame cerebral para destruir essa situação. Posso tornar-me numa pessoa dependente e incapacitada de levar a vida que levei até aqui... Mas aquilo que sou em verdade não poderá ser diminuído ou limitado. Embora na prática a minha atitude perante a vida acabe por me limitar no contacto que tenho com esse fundamento daquilo que sou.
Isso é o pior que nos pode acontecer. Morrermos de sede à beira da mais deslumbrante fonte de água fresca.

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