quinta-feira, janeiro 19, 2006

A comunicação


A comunicação está no centro do actual desenvolvimento do mundo. A chamada “aldeia global” está cada vez mais pequena. A aldeia dos nossos avós era incomensuravelmente maior, com um tempo ritmado pelo despertar dos pássaros assim que se ouvia o primeiro galo e pelo gargarejo dos cântaros na fonte de água fresca. O sino fazia-se ouvir sempre que atenção de todos era requerida para a resolução de qualquer problema ou para o cumprimento dos rituais.
Mas não estou a fazer a apologia da vida campestre, nem me motiva qualquer bucolismo assente na recusa do progresso. Esse tipo de atitude ceifou muitas vidas e multiplicou a dor e a miséria, obrigando milhões de pessoas a emigrar.
O que está em causa nesta comparação é algo de muito profundo. É o modo como somos e como construímos a nossa humanidade, como nos damos aos outros e à vida, ou como não nos damos.
Comunicar é, acima de tudo, comungar, partilhar com os outros o que nos faz crescer, abrir espaços de humanidade e de encontro autêntico com o que nos convoca para um aqui e um agora. A diversidade é, assim, uma chave de valor incomensurável. Não devemos criar em nós a necessidade de projectarmos nos outros as nossas frustrações, de querermos que o mundo se torne num campo de concentração dominado pelo único ditador verdadeiramente iluminado e supremamente bem-intencionado: o nosso ego, senhor absoluto dum reino fantasmático criado à imagem e semelhança do que nos falta e que queremos exorcizar a todo o custo.
Daí derivam todos os moralismos. Herdámos a tendência nefasta de nos recusarmos o prazer e de considerarmos que não deve haver prazer na diversidade, alegria na diferença. Queremos que todos os demais descubram que nós somos em verdade, por um acaso da história, ou por uma predestinação sublime, que nós somos verdadeiramente o que um homem (ou uma mulher, é claro) deve ser. Em suma, a nossa maneira de ser, em todos os sentidos, deve tornar-se numa ortodoxia. A nossa suprema sapiência deve derramar-se sobre a cabeça dos demais, agradecidos, embevecidos, curvados na sua ignorância sebenta, sedentos da verdade que despontou em nós.
Por isso qualquer bocejo é uma ofensa, cada objecção, uma calúnia.
Um segredo que aprendi com o meu avô materno talvez mostre a grandeza do viver da aldeia em que ele nasceu e cresceu: enquanto se sucederam as figuras régias e os ditadores, as pessoas simples do povo ficavam livres da ilusão de querem ser mais que os outros, da sua aldeia. O senhor doutor vivia numa casa apalaçada e passeava-se à tarde pela rua principal da aldeia e recebia cumprimentos e deferência, os homens de chapéu ao peito e as mulheres com os olhos no chão. E esses mesmos homens e essas mulheres seguiam assim para a sua vida, onde se encaravam como iguais, na desgraça e na simplicidade. E por vezes lutavam contra as calamidades, acompanhavam os moribundos com aconchego e com a mesma humanidade com que mudavam a palha dos animais, com a humildade e a constância das pessoas simples.
Noutras paragens, esses mesmos homens e essas mesmas mulheres apedrejaram a guarda e foram ceifados a tiro. São coisas da luta pela dignidade.
Mas hoje as pessoas parece que engoliram o senhor doutor. Vêm de fábrica com ele bem entranhado na psique, sempre em agitação frenética e em busca de “respeito”.
E em todos os senhores doutores, principalmente nos visceralmente entranhados em cada um, há um ditador em potência.
Comunicar, nesse sistema de ser-se, é declamar sentenças, decretar bulas e dogmas, ser “Alguém”.
Por isso a qualidade da vida na nossa aldeia é, globalmente, pobre. Miserável, mesmo.
Milhões de egos em busca de reconhecimento. À janela dos seus palácios de faz de conta. Windows, Windows, Windows, janelas, janelas, janelas, todos querem janelas para o mundo. O mundo é uma praça imensa rodeada por janelas. As portas estão encerradas ou até já não existem e o Sol já não vem beijar a face destas criaturas que se querem imunes a tudo o que evidencie a sua pequenez, fechadas à imensidade. Se Freud tivesse que ter razão, poderíamos dizer que a humanidade dos nossos dias ficou refém do estádio anal, tal é a fixação de cada um no seu tubo digestivo mental. Como aquele miúdo de um dia engoliu uma moeda de 25 tostões e viu as suas fezes, por ordem médica, exaustivamente remexidas. Foram os 25 tostões mais valiosos que essa criança viu na sua vida, porque passaram pela provação mágica da sua interioridade. Ainda hoje figura, com destaque, na caixa das relíquias da família.
Muitos aparelhos, daí a maravilha desta era tecnológica, permitem que o nosso ego se projecte à distância. Mesmo as nossas chamadas no telemóvel conseguem dispersar-se para além da atmosfera terrestre. E isso não é pouco. Vestígios da nossa existência poderão ser detectados por hipotéticos seres inteligentes fora da terra. E o seu grau de inteligência será proporcional, como é óbvio, à sua capacidade de se conectarem com o nosso ego.
Esta projecção à distância e as maravilhas que ela traz, torna cada vez mais difícil que consigamos livrar-nos de nós, da nossa ditadura sobre a vida em nós. Pelo que a fortuna dos Gates deste mundo continua mais do que assegurada.
Enquanto isso o planeta definha. As baterias dos inúmeros aparelhos de assistência ao egotismo, a poluição resultante da queima de combustíveis fósseis, no frenesim industrial de manutenção do imperialismo do fantasma que é, a consumação em grande dum cartesianismo pequenino, dos pequeninos, tudo isso, juntamente com tudo o mais que seria fastidioso aqui referir, está a destruir a Natureza.
O que é bom, porque o ego da malta ecologista tem com que se alimentar.

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