quarta-feira, novembro 18, 2009

Quem precisa dum farol?


Por muito que se fale do amor e se escreva acerca dele até que as palavras se incendeiem e nos transportem para lá do habitual e do quotidiano, parece que se esquece que aquilo que, justa ou injustamente, chamamos quotidiano, o viver da proximidade e da tangência, resulta da forma como amamos ou não amamos. E é verdade que a moral pode ajudar a cercear as divagações, os desvios do comum e do sabido. Mas se acolhemos o imprevisível no âmago do que vivenciamos, as fronteiras e as estradas são estilhaços, o cenário duma fantasmagoria que abandonamos de livre vontade.

Hoje, por ser feriado, não pude ir à prisão dar a minha aula das Segundas-feiras. Nem sei se estas reflexões são partilháveis ou se a partilha delas será uma profanação, mas haverá sempre um leitor com coração e por enquanto a partilha parece-me importante.

Hoje, neste dia invernoso, o impacto do início do dia de trabalho teria sido, certamente, muito intenso. Lembro-me do amanhecer do dia em que dei a segunda aula na prisão, como me impressionou o caminhar abatido dos homens envoltos em bruma da primeira brigada, composta por aqueles que trabalham no complexo prisional. Caminhavam calados, de olhos no chão, acompanhados pelos guardas armados. Parecia que a esperança fora encorraçada daquele espaço penal. O que vale o ser humano? Por muito que queiramos arrumar a patência do si e da vida, vivida na sua concretude constritora, no caixote dos brinquedos inúteis, o que vale um ser humano?

Depois veio a brigada dos alunos da escola. Ainda havia nevoeiro e senti que tinha que fazer alguma coisa na aula para convocar o sol e a elevação para o centro da aula. Mas era difícil. As primeiras aulas foram um tímido arremedo das aulas a que me tenho habituado. Há olhares tristes que, se não nos agarrarmos com todas as forças à luz que vem de dentro, nos deixam vazios e gélidos, completamente vencidos pela melancolia.

Mas a Aula, encarada como espaço de liberdade e entrega, foi desabrochando semana a semana. Até se atingir um clímax, duas semanas atrás. Começo sempre com uma pequena divagação e naquela aula, não sei bem porquê, conduzi os alunos para um terreno pantanoso: a reflexão sobre a felicidade. As três horas seguintes foram, talvez, as mais intensas da minha vida...

A conversa começou, como é costume com as turmas de adolescentes, cada um foi falando da sua ideia de felicidade, sempre apontando para o futuro como o horizonte de conquista desse objectivo supremo. Eu fui sempre usando da ironia: o que é que os impede de serem felizes hoje? Aqui? Agora? Um aluno apontou para as grades do lado de fora das janelas e eu respondi-lhe que não via grades do lado de dentro. E aí o mais brusco e menos colaborante disparou: “e você, o que é a felicidade para si, não me vai dizer que é feliz...”

Eu respondi-lhe: “É claro que sou feliz!”

- “Então, tem tudo o que quer?”, respondeu rindo em tom de desafio.

- “Não tenho nada do que não quero e acho que isso já me ajuda em muito”. Isto fez com que o brutamontes, sempre com um sorriso trocista, dissesse entre dentes: “Já vi tudo, você já está pronto para arrumar as botas, que idade tem?”

À minha resposta informou-me que tem menos uma década do que eu, mas que ainda lhe falta fazer muita coisa na vida e que não estava pronto para morrer e nem o estaria quando chegasse à minha idade. Eu disse-lhe que a felicidade talvez não tivesse nada a ver com coisas que se podem fazer, ou não, na vida e que poderíamos ser felizes, alcançássemos, ou não, os nossos objectivos.

- Então diga lá qual é o seu conceito de felicidade...

É. Eu não tenho um conceito de felicidade. “Toda a gente tem um, você está para aí a falar, a falar só para gozar com a nossa cara... diga lá qual é o seu conceito de felicidade.”

Perante a risota geral, mesmo dos rostos mais tristes que me deixaram apreensivo ao longo das aulas anteriores, eu disse: “vocês estão a ser fedorentos sem gato!” e lembrei-lhes a história do camponês em frente da lei do texto de Kafka que deixou meia turma pensativa na aula anterior. Que importa termos muitas coisas ou fazermos muitas coisas, se não acabarmos com a nossa insatisfação? E se, tal como acontece com o camponês que tinha uma porta da lei só para ele, mas só o soube no fim da vida, nós tivermos uma vida toda para nós? De que é que podemos usufruir para além da nossa vida? Por isso a nossa vida parece-nos o que há de mais precioso, porque é que não poderá ser isso a dar sentido às coisas e aos acontecimentos por que passamos?

E nisto ouviu-se uma voz que me cortou o fio ao raciocínio:

- E se só levámos porrada? O professor já alguma vez comeu sopa com os dentes partidos, com o sabor da sopa e do sangue misturados? Com dez anos?

Não. É claro que não. Essa é uma experiência sua, João. O João deu sentido a esta interpelação na aula da semana passada quando dei à turma uma tarefa “perigosa”: cada um iria escrever uma carta à pessoa a quem mais odiasse. O João, um menino de trinta e poucos anos, escreveu uma carta ao padrasto. Costuma ser dos últimos a acabar as tarefas, desta vez foi o primeiro: uma folha A4 que me foi entregue por uma mão trémula e naqueles olhos acesos percebi o sofrimento e autenticidade daquela prova. Tem uma infância terrível o João. “Foste tu quem me pôs aqui, correste comigo do amor da minha mãe, fizeste-me mau e agressivo, deste-me tanta porrada...”. “Sabes o que me apetecia fazer contigo? Nem imagines...”.

Mas o mais interessante da carta é a frase: “roubaste-me tudo, seu porco, mas não vais roubar-me uma coisa: não me vais impedir de ser feliz.”

Quando li isto fiquei na dúvida se deveria dar continuidade à actividade. Mas... E, na posse das cartas, informei a turma de que agora cada um deveria colocar-se no lugar do destinatário da carta e responder. Houve muita agitação, um aluno disse-me que eu não sabia o que estava a provocar. O João perguntou-me: “e se essa pessoa já morreu?” Eu respondi-lhe que o ódio tem o condão de ressuscitar qualquer morto, pelo que seria fácil escrever a carta. E o João escreveu. Poucas linhas, algo assim: “não quero que me perdoes, sei que te fiz muito mal, mas deixa-me arder em paz no inferno.”

Mas, voltemos à aula sobre a felicidade. O que é que se pode responder ao João? Foi aí que peguei numa ficha sobre Etty Hilessum que e eu trazia dentro da minha pasta desde a primeira aula, à espera dum momento propício. O João começou a ler os textos. A minha colega das aulas de 5ª-feira passara o filme “A vida é bela” e o João estudou o fascismo, tendo ficado muito impressionado com o anti-semitismo. As palavras de Etty comoveram-no. E, contrariamente ao que é costume, quis ler os textos em voz alta.



"Acredito verdadeiramente que é possível criar, mesmo sem jamais ter escrito uma palavra ou pintado um quadro, apenas moldando a nossa vida interior. E isso também é uma proeza." |Etty Hillesum



O João é uma obra de arte... Enoja-me a imbecilidade, a tendência para discriminar, para distinguir e julgar os homens. Não há homens superiores, apenas a superioridade de ser homem, ou cão, ou formiga, não estou a ser antropolátrico, se manifesta de formas muito estranhas, por vezes quase invisíveis. Cada vida é um alvor incontível. E nada de lançar cinzentismos ou qualquer forma de cloro conceptual sobre a mirífica paleta que se abre aos olhos do coração quando queremos ver o que há. Se queremos ver, vemos. Não é João?

Ora, tudo isto desemboca no amor. Só quem ama se liberta da necessidade de vir a ser isto ou aquilo. A criatividade mais pura...

E isto já tinha ecoado nas quatro paredes daquela sala com grades por fora, logo na primeira aula. Duma forma quase descabida disse aos alunos que todos éramos capazes de fazer milagres, de criarmos amando, de sermos para lá do feito e do consumado. E quando perguntei se alguém ali já tinha feito um milagre, um vozeirão respondeu no fundo da sala:

- Eu já, a minha filha!

Eu respondi-lhe que não lhe devia ter custado nada fazer esse milagre, o que arrancou a seguinte tirada do colega do lado do dono do vozeirão que provocou o riso geral: “custou-lhe uma dor de costas!”



"Sei do grande sofrimento humano que se vai acumulando, sei das perseguições e da opressão… Sei de tudo isso e continuo a enfrentar cada pedaço de realidade que se me impõe. E num momento inesperado, abandonada a mim própria — encontro-me de repente encostada ao peito nu da Vida e os braços dela são muito macios e envolvem-me, e nem sequer consigo descrever o bater do seu coração: tão fiel como se nunca mais findasse…" |Etty Hillesum



A aceitação! Só vive mesmo quem aceita a vida. Só tem mérito quem se merece e só se merece quem aceita, incondicionamente, a si próprio e aos outros. A aceitação! Esta palavra, como eu esperava, incendiou a aula. Mas duma forma que eu não imaginara.

O joão continuava a ler as palavras de Etty:

Nova certeza: que querem o nosso extermínio. Também isso eu aceito. Sei-o agora. Não vou incomodar outros com os meus medos, não vou ficar amargurada se outras pessoas não entenderem do que se trata, para nós, judeus. Esta certeza não vai ser corroída ou invalidada pela outra. Trabalho e vivo com a mesma convicção e acho a vida prenhe de sentido, cheia de sentido apesar de tudo, embora já não me atreva a dizer uma coisa dessas em grupo. O viver e o morrer, o sofrimento e a alegria, as bolhas nos meus pés gastos e o jasmim atrás do quintal, as perseguições, as incontáveis violências gratuitas, tudo e tudo em mim é como se fosse uma forte unidade, e eu aceito tudo como uma unidade e começo a entender cada vez melhor, espontaneamente para mim, sem que ainda o consiga explicar a alguém, como é que as coisas são.” |Etty Hillesum

A leitura deste excerto do Diário provocou uma reacção muito enérgica dos alunos de origem africana: “aceitação?! Temos que aceitar o racismo?!”. Tinham ficado chocados com uma reportagem dum telejornal sobre o racismo. Perguntaram-me se se poderia aceitar a acção do branco que tinha agredido um menino negro que ocupava um baloiço para que o seu filho pudesse andar no baloiço. Ao reagir a mãe do menino fora também agredida. A revolta dos meus alunos explodiu ali bem à minha frente. O que tem esta terra de especial para a considerarmos razão suficiente para a discriminação? Nascer aqui, ou além, qual a diferença? E tudo jorrou cá para fora: o racismo inerente ao sistema prisional (na perspectiva dos condenados), a discriminação que existe mesmo na escola primária: o Duarte diz que se alguém lhe tivesse dado a mão na escola não teria ido parar à prisão com 16 anos. Era preto, era natural ser bandido. Toda a gente achou natural e inevitável. A prisão é só para alguns.

A revolta dos meus alunos, que já não conseguiam sequer estar sentados enquanto desabafavam, levava a que me bombardeassem com a pergunta: “acha bem?!” Eu apenas respondia: “vocês acha bem? Então porque é que eu haveria de achar bem?”

A dada altura o aluno mais revoltado deu-se conta de que eu ainda não os tinha “mandado” calar. Eu perguntei-lhe porque é que ele dizia isso e respondeu-me: “É o que toda a gente faz connosco, mas já estamos há mais de uma hora a falar.”

- E professor, eu cresci nas barracas, fui atirado para um bairro social longe de tudo, fui apontado a dedo, maltratado...

E eu:

- De onde onde julgam que eu venho?

E contei-lhes as minhas origens e de que elas não me impedem de ver que todos os homens são dignos da mais alta consideração e que ninguém é mais ou menos do que ninguém...

- Então o professor compreende-nos! - E vi duas lágrimas a correr naquela cara exaltada e dura. - Agora sei porque é que o professor nos olha nos olhos e está aqui connosco...

E alguém lembrou as minhas primeiras palavras, na primeira aula. Esse alguém acabou por confessar que na primeira aula ficou com a convicção de que eu era maluco.

Essas primeiras palavras foram: os muros da prisão têm dois lados, vocês estão presos deste lado, as outras pessoas estão presas do outro lado. A grande diferença entre “cá dentro” e “lá fora” é que lá fora há muito mais criminosos do que cá dentro. As pessoas lá de fora julgam-se diferentes e melhores do que vós, essa é a sua prisão. O que eu gostava era que vocês se libertassem da prisão de cá de dentro e lá de fora.

Quando saírem e se sentirem discriminados, encarem isso como o resultado da prisão lá de fora. Muitas pessoas querem-se sentir melhores do que os outros, apontam o dedo aos que “falharam”. A melhor reacção que podemos ter perante os outros não é o moralismo, mas a aproximação. E isso começa com os que nos são próximos: todos precisam de ser amados, se um amigo não se mostrar conforme aos nossos padrões morais o que merece mais respeito e amor é o nosso amigo e não os nossos padrões morais, quem sabe se o seu abismo não está apenas no distanciamento que colocamos entre nós e ele? Quem pode cair no abismo do amor e magoar-se?

Da minha parte... nunca o servilismo ou a subserviência. Nem a dúvida sobre se vale a pena amar, mesmo que o deserto esconda a visão das flores.

E sobre o racismo, enfim, disse que estava muito triste porque os porcos dos racistas estavam a ganhar. Eram mesmo melhores do que os meus alunos, porque conseguiram vencê-los e tomar conta do seu coração e envenenar cada um dos seus dias. O toque impediu mais desenvolvimentos, mas o futuro promete.

A minha vida já mudou por causa disto. Que mais se seguirá?

1 de Dezembro de 2008


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