domingo, setembro 14, 2008


Vou Ser Senhor do Mundo

Vou falar com o Pássaro-Rei,
vou-lhe pedir um favorzinho:
vou ver se ele me dá emprestado
sete penas brancas
para eu voar
e ir poisar no tecto do mundo.

Se ele disser que sim,
estou garantido,
porque Capotona-Preta prometeu virar-me
dum passo para o outro,
em senhor da terra,
senhor das águas,
senhor dos céus,
senhor do Mundo.

Mas é se eu voar
com as sete penas brancas
e for poisar no tecto do Mundo.

E porquê ele não me faz o favorzinho,
se lhe levo um punhado de milho
e se lhe digo: — Por favor?

Jorge Pedro Barbosa
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É importante, quando formos falar com o Pássaro-Rei , que saibamos pedir, e pedir "por favor".
É uma lição interessante, posto que pedir não deve implicar servilismo. Se pedimos usando o outro como um mero dispositivo de satisfação, ou de gratificação, para além de estarmos a investir nisso uma parte importante das energias que nos são necessárias para sermos em verdade, estamos a recusarmo-nos à sua humanidade. O que é algo que não devemos, sob circunstância alguma, fazer com o Pássaro-Rei.
O milho torna-se grácil quando dizemos "por favor". Não se trata de um suborno ou de um pagamento. A instância que move a resposta ao nosso pedido não será essa.
O segredo está no pedir, no sermos capazes de pedir. Porque há formas de pedir que nos impedem de sermos em verdade. Porque todos nascemos com uma irrevogável soberania sobre o mundo: a de no mundo sermos nós próprios. E neste sentido, todas as outras formas de soberania são uma espécie de simulacro de Pássaro-Rei. Porque o autêntico Pássaro-Rei é o que em nós nos eleva. Trata-se, portanto, de uma realeza que nos pode fugir se a assustarmos.
Daí a importância do milho.
Todas as formas de servilismo são degradantes. Daqui se depreende a importância do Serviço. E serve quem não se serve, posto que quem se serve é servo. O Serviço é, pois, a prática por excelência da insubmissão. Não nos submetermos significa que não aceitamos qualquer forma de degradação daquilo que somos e daquilo que os outros são. O que está bem patente na seguinte quadra de Agostinho da Silva:

“A quem jamais me dá ordens
faço o que não apeteço
mas sou contra se alguém manda
pois sirvo, não obedeço.”

Muito se poderia falar da liderança pelo exemplo. Os autênticos líderes são os que fazem primeiro, os que se fazem ao camin
ho, e o fazem a partir da sua necessidade de caminhar. Assim há líderes que não sobem aos palanques, nem se assumem sob os holofotes mediáticos. Estes últimos são servos e servis. Servem, primeiro a sua ambição, servem, depois e sempre, as vontades alheias.
E como vivemos numa sociedade movida pela crença de que tudo se compra, esquecemo-nos que só se pode comprar o que é posto à venda. Ora, há coisas que não se vendem, ou por não haver quem se queira assumir como seu vendedor, ou por não serem vendáveis, não sendo, por isso, compráveis. Mais uma quadra agostiniana:

"Para tantos existir
é uma queixa pegada
terem de ganhar a vida
quando afinal lhes foi dada."

Uma das coisas mais tristes a que podemos assistir é o clima de competitividade que se vive por todo o lado e, de forma muito percuciente, na escola. Estamos a educar bestas. Em vez de levarmos a que cada um dos alunos se descubra e se assuma como o seu mais importante projecto, o que o levaria a encontrar-se verdadeiramente com os outros, nos outros e na sua liberdade grácil, fomentamos o medo de falhar e a insatisfação, a inveja e a auto-punição. O medo de existir instaura a vida como uma guerra em que só os que forem mais "aptos" têm o direito de sobreviver.
Mas nós não nascemos para sobreviver, mas para viver. Ninguém deve querer ultrapassar a sua vida, deixando de viver. Se bem que exista algo em nós que não é nós nem é nosso, mas isso só será assumido se formos vivos. E enquanto somos vivos somos Pássaros-Rei. E sempre que estivermos coligados ao nosso coração, estaremos no tecto do mundo.
Há tempos, meio a brincar, disse a um colega que o mais profundo tratado de pedagogia jamais escrito, é a Arte da Guerra do Maquiavel. E o homem, para meu espanto, leu a obra e veio concordar comigo. Eu ouvi-o com atenção, meio a brincar. Mas há brincadeiras que têm resultados funestos. Mas no fundo quase todos os tratados de pedagogia, mesmo os das assim chamadas ciências da educação, são variantes, mais ou menos refinadas, mais ou menos seráficas, da Arte da Guerra. Não foram os génios do pentágono que inventaram a guerra "limpa", sem danos colaterais e sem a morte de soldados "amigos". É claro que neste caso isso se trata de uma utopia propagandística. Os verdadeiros inventores da coisa são as cabeças pensantes da pedagogia. Castiga-se sem castigar, ensina-se sem ensinar, mata-se sem matar, vive-se sem viver. E quando os mortos-vivos saem da escola, atiram-se sobre o que mexe para satisfazerem a sua egolatria. E a coisa pega-se.
Estamos, então, muito longe daquela máxima de S. Agostinho, "ama e faz o que quiseres". É claro que não é necessário ir tão longe para dar milho ao Pássaro-Rei. Todo o milho é do Pássaro-Rei, por isso ninguém lhe dará nada ao dar-lhe milho.
O problema é ele descobrir como abrir a gaiola.

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