quinta-feira, setembro 04, 2008

É possível uma via compassiva em política?

Em primeiro lugar, há que precisar o que se deve entender por 'via compassiva'. E considero que só há uma forma de entender este conceito: trata-se de colocar a compaixão (conceito que não carece aqui de definição) no centro de toda a acção, de toda a reflexão, no fundo, considerá-la a base da nossa compreensão do mundo e da nossa relação com os outros.
Neste sentido, a ética será colocada no centro de toda a intencionalidade, quer esta esteja dirigida para o agente, quer o esteja para os outros. Trata-se duma ética e não duma moral, pois o que está aqui em causa é uma atitude perante a vida e não um sistema de normas assente numa constelação de crenças instauradoras de separatividade.
Trata-se, então, duma ética da aceitação, paradoxalmente, ou não, assente na rejeição do conceito moderno de tolerância (como bem viu o Mestre Agostinho). Nós não temos que tolerar os outros, mas temos que aceitar a sua irredutível diferença, o carácter supremo da sua existência.
Mas a aceitação não deverá ser uma adesão cega, uma vez que a ética da aceitação só poderá afirma-se em ruptura com o relativismo axiológico que se tornou um a priori das sociedades ocidentais, ou de matriz ocidental, e que tem como pólo de co-legitimação o monolitismo e o fanatismo que alimentam todas as formas de intolerância cega mobilizadora das massas.
Neste sentido, há que desenvolver uma prática da intolerância: é intolerável que se morra de fome; é intolerável que qualquer ser humano seja tratado como inferior, seja em que contexto for; é intolerável que o obscurantismo, sejam quais forem as suas formas, seja assumido como fonte de verdade; é intolerável que em nome de princípios de carácter político, filosófico, religioso, ideológico, se vilipendiem seres humanos; é intolerável a crueldade para com os animais, etc., etc..
Então, uma via compassiva em política por si só seria bastante “revolucionária”, porque, primeiro, levaria a uma transformação, desde o interior, dos agentes da mudança. Seria aí, nesse campo muitas vezes negligenciado, que se travariam as batalhas mais titânicas: em vez de procurar na negatividade dos outros razões para os conflitos e para os fracassos (mas às vezes ela também nos concede vitórias), procurar-se-ia as bases da concórdia, uma vez que a autêntica concórdia não anula as diferenças entre pontos de vista, nem a radical alteridade dos outros.
Essas bases estão no coração. O problema é que poucas pessoas acreditam que possa existir no centro do seu peito algo mais do que uma bomba para fazer circular o sangue e, muitas vezes, para detonar a incompreensão, fonte de quase todos os derramamentos de sangue.
Mas há algo para além disso. Há a possibilidade de iluminar a realidade com uma luz que não cega nem inquina a visão. E é à luz dessa luz que se pode ver a autenticidade, a nossa e a dos outros.
E a concórdia (que não devemos confundir com concordância), colocada no centro do viver humano, levaria à rejeição de todos os dispositivos geradores, ou veiculadores, de discriminação e de agressão. E todas as tomadas de decisão assentariam no princípio, eticamente intocável, da não-violência.
Sendo assim, a concórdia colocada como base de entendimento, faria com que a autenticidade da lusofonia se tornasse uma evidência e uma prática. O pior que pode acontecer será o encastelamento em posições inamovíveis e a construção de muros e a imposição de barreiras. Os que se nos opõem não são nossos inimigos, apenas nos mostram que há um caminho a trilhar, que há um espaço mais vasto do que o que nós assumimos para a nossa afirmação da verdade.
E aqui surge a questão dos interesses. Os interesses particulares são legítimos, seja o dos indivíduos, seja o das pessoas colectivas que aceitam o jogo democrático, ou o funcionamento civilizado das sociedades. O único senão é que a prossecução dos interesses particulares, sem uma orientação para o que transcende a particularidade, pode gerar frustração e, com isso, sofrimento e o agudizar da conflitualidade.
O campo da política terá que ser assumido como um horizonte onde os interesses particulares possam ser compossíveis com os interesses colectivos, ou mesmo universais, considerados,estes últimos, como superiores e “intocáveis”. Neste sentido a Declaração Universal dos Direitos do Homem aponta uma via, embora essa seja ainda insuficiente.
Esses “interesses” universais assentam em vários princípios, de entre os quais gosto de destacar o seguinte: cada ser humano é supremo.
Mas não se trata aqui duma antropolatria, mas de um princípio de uso pragmático – é útil partir-se do respeito incondicional pela pessoa humana, seja qual for o seu estatuto social, cultural, político. É útil porque impede que deixemos nascer em nós a aversão e o egotismo fricativo. É útil, também, porque fará diminuir a carga de sofrimento que subrepuja a humanidade neste nosso mundo acabrunhado pelo terror e pelo deserto espiritual.
E, assim, antes de julgarmos os outros, devemos reflectir sobre o que é que nos instauraria como juízes dos outros, ou mesmo de nós mesmos, com base em princípios heteronómicos.
Mas aquele princípio é solidário com uma série de outros. Por exemplo: todos os seres têm direito ao bem-estar e à felicidade. O que significa que temos o dever de respeitar a vida, em todas as suas formas, e promover a afirmação da vida, ou de deixar que a vida se afirme. O que pode significar que não podemos ser obstáculo à afirmação do que é diferente de nós e, muitas vezes, nos supera, o que que pode ser observado na forma como os seres humanos se relacionam com os problemas ambientais.
Não se trata, portanto, de procurar implementar um governo “dos melhores”, uma aristocracia, mas de deixar que o Bem nos governe, que sejamos governados pelo melhor que há em nós. É claro que todos temos, homens e países, fantasmas no armário, todos vivemos a dialéctica da luz e da treva. Mas a treva e a luz não são confundíveis, embora o seu confronto possa ser causa de legítima confusão.
E voltando à questão inicial, há que colocá-la no centro da nossa vida: é possível uma via compassiva na nossa vida? Há aí uma via?
E o problema não é de somenos: pode haver aí a tentação da passividade ou do contrapolar voluntarismo. O mesmo se passa no campo da política.
A paciência pode ser confundida, se vista de fora, com passividade. O desejo de ajudar pode, igualmente, ser confundido com uma forma de idiotia ou de “palermice”. Mas não nos devemos inquietar com a possibilidade de padecermos duma espécie de complexo de Forrest Gump. Porque a autêntica nobreza nasce da compaixão. A que também podemos chamar amor e, se olharmos à Carta aos Coríntios, da autoria de um dos maiores poetas que já se fizeram ao mundo (ou ao mar), isto seguindo a lição de Pascoaes, há formas de amar que são pueris e, neste caso, nem a língua dos anjos, nem a mais alta “sabedoria”, podem substituir o amor adulto, ou seja, levedado, com o qual nos levantamos do chão e através do qual nos unimos à luz do mundo, a verdade, “lusa” que significa, “portadora de luz”. A Luz talvez nunca saibamos de onde vem. Basta que saibamos acolher o que ela ilumina.

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